CADASTRE-SE

V Grupo de Estudos – Sobre o pensamento de mulheres negras

Tainara Machado

bell hooks nos mostra em seu texto “vivendo de amor”, que o amor é uma ação. Durante muito tempo fiquei em busca desse tal “amor”, que de fato não conhecia, ou nunca me foi apresentado pois ao longo da minha vida tudo foi muito bruto. E as manifestações de afeto quase nunca aconteciam dentro de casa com as pessoas da minha própria família, tanto que só fui me aproximar, conversar de uma maneira concreta com a minha avó, a pouco mais de um ano. Minha avó criou eu e meus irmãos para a minha mãe conseguir trabalhar, minha avó abdicou do seu próprio trabalho para conseguir se dedicar aos seus netos. Minha avó tem 75 anos e desde os 1 anos de idade já vivenciava o terreiro, minha avó é uma mulher de axé. Tanto que as maiores recordações que tenho dela é referente aos rituais do terreiro: sinetas, velas, ervas, orixás e muito axé. Mas isso não mudava a maneira dela se relacionar com a gente, era bruta, de pouca conversa e muito firme, às vezes quase um general, percebia que a minha mãe tinha herdado um pouco dela e por consequência acabei ficando um pouco assim.

Só que eu cresci, e com isso veio a vontade de conhecer mais sobre a religião da minha avó, como era, o que de fato estavam falando nas rezas, de onde vinham, eram inúmeras as minhas dúvidas, mas a vontade maior era de me aproximar de minha avó. Então fui me aproximando, conversando e perguntando sutilmente sobre os orixás, seus mitos rituais. E ela ia me dizendo, me mostrando e ensinando com calma e cuidado. Enquanto isso, eu ia estudando e me empenhando para ter mais assunto com ela. Por mais que o meu interesse pelo assunto fosse novo, os rituais de minha avó e a sua fé pelos orixás, não eram.

Desde pequena lembro dela em seus trajes azul, às vezes todo branco, saias de armação enormes e pesadas. Tudo cuidadosamente lavado e passado com respeito e encanto, assim como a sua fé por eles. Até hoje ela é conhecida no terreiro por ter “uma boa mão” para determinados rituais, e com tamanha fama a casa era e é sempre cheia de pessoas a procura de trabalho, dinheiro e amores. Minha avó sempre foi justa e cobrava conforme o axé de cada orixá, nada comparado aos absurdos de algumas casas de religião, talvez também por esse motivo era bastante procurada por gente de fora, familiares e amigos. Mas no final do dia era a Eva, a mãe, a avó, a mãe preta servil e sozinha, que mesmo tendo gestado e parido 6 filhos e com os netos pequenos, vivia em constante solidão e sem praticamente nenhum amor, hoje eu entendo que sempre foram os orixás que davam forças a ela. Lembro de diversas vezes mentir pra ela, sim mentir, inventava dor de barriga, na cabeça, ouvido, pois me queixando pra ela, certamente ela iria me acalmar me passando uma vela, um Orí, banhos e mais banhos de ervas, e nisso eu teria o toque dela, que pra mim era o que realmente me acalmava e como ela não demonstrava afeto, eram as únicas chances que eu tinha, hoje em dia ainda é assim.

O ritual do banho pra mim era uns dos melhores, pois sentia ela de fato zelando e olhando por mim, não me sentia sozinha naquele momento. Em um desses dias, depois de ter terminado de me dar o banho de ervas, parei para conversar com ela sobre quem de fato era ela e as pessoas que vinham antes dela, ela timidamente foi me contando aos poucos quem era, de onde vinha. A partir daquele momento pude conhecer um pouco da mulher incrível que é a minha avó.

Teve um dia em especial pra mim, pois foi o dia que ela contou um pouco sobre sua mãe carnal. Maria Machado era o nome da mãe da minha avó, uma mulher negra, mãe de 8 filhos. Maria era uma alabê, dizem que uma das melhores do terreiro. Maria foi uma mulher forte e com muita fé nos orixás, assim como minha avó é. Maria partiu cedo, aos 35 anos e com um filho no ventre, em decorrência de um problema cardíaco. Mas antes de partir, ela iniciou o seu filho mais velho, Antônio Carlos Machado de Xangô, hoje um dos mais antigos alabês do Rio Grande do sul. Maria, assim como minha avó, foi a personificação da mãe preta que se doou até o último momento pelos seus filhos, elas representam a força.

Infelizmente, as lembranças que minha avó tem sobre Maria são muito poucas, pois minha ela tinha apenas 12 anos quando Maria faleceu. Não temos fotos, registros, nada sobre essa mulher incrível, a única coisa que temos sobre Maria são as recordações muito intensas de minha avó. Por diversas vezes que falamos sobre Maria, na casa de minha avó, o cheiro que pairava no ar era de alfazema, agora quando escrevo consigo sentir o mesmo cheiro.

Às vezes fico imaginando como seria a minha bisavó, se eu sou parecida com ela, se a minha avó traz algo dela. Fico tentando imaginar ela na lida do terreiro, no tambor, tento imaginar a vibração e dimensão que foi essa mulher para as pessoas que viviam com ela Nunca a vi, mas parece que encontro ela em minha avó, e em todos os encontros com as Atinúkés, vejo a Maria em todas aquelas mulheres negras, e isso me conforta um pouco.

Ao analisar todo o meu percurso ao chegar até aqui, consigo entender que procurava por um amor que não existia, pois era construído por uma base totalmente Ocidental ou talvez eu não entendia que não era amor. Ao me aproximar de minha avó, conheci o real significado do amor preto, aquele que CURA. A cada toque dela, a cada banho de ervas, ela ia me curando um pouco e me reconectando com ela e comigo mesma, e nesse processo eu vou construindo o meu amor interior, como bem nos ensina bell hooks, o amor pela minha avó e pelos orixás.

Talvez por esse motivo que no dia 30 de Setembro eu recebi um dos mais incríveis presentes da vida, e esse presente veio dos orixás. Acho que um sinal de que sou importante e amada independente de qualquer coisa, é ainda inexplicável o que eu senti e torço para que sinta novamente pois naquele momento consegui sentir a energia e o amor deles.

De acordo com a pensadora negra e Atinúké Nina Fola, “a colonialidade nos afastou de nossa mais profunda e importante compreensão de nossa existência” concordo com a Nina, mas ouso em dizer que existe um elo que nos liga aos nossos ancestrais e é forte, um elo que nem com a diáspora foi capaz de cortar. A ancestralidade é a energia que nos liga aos nossos de um maneira muito forte, que pode levar o tempo que for, mas nos reencontramos. E quando acontece esse encontro passamos a nos enxergar e perceber que nunca estivemos sozinhos, pois somos de lá.

Quero deixar esse texto para a minha avó, mas principalmente, para a minha mãe e minhas tias, que muito provavelmente não conhecem nada sobre quem foi Maria Machado.

Quero que elas saibam com esse texto, de onde minha avó veio e quem a minha avó é, uma mulher forte e de coração grande, que nunca deixou de ter fé e acreditar na força de sua ancestralidade. Dedico também a minha bisavó Maria Machado, uma mãe preta de axé, que os orixás a tenham com cuidado e afeto e que esse lugar tenha o cheiro de alfazema, que é o cheiro que sentimos quando falamos dela.

Que a maldade do mundo Ocidental não nos impeça de nos reencontrarmos com os nossos ancestrais.

 

Aluna do 3° semestre do curso de Serviço Social da UFRGS, negra, moradora do Campo da Tuca. Educadora Social da Associação Comunitária do Campo da Tuca, Conselheira do CMDCA e integrante do Grupo de estudos Sobre o Pensamento de Mulheres Negras – Atinúké.

REFERÊNCIAS

HOOKS, bell. Vivendo de Amor. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/> Acesso em: 04 de Set de 2019.

PROJETO GEMA no Estado do Rio Grande do Sul. In: “GEMA EPISÓDIO 7- ANTÔNIO CARLOS DE XANGÔ”. 2016.
Disponível em: <htps:/www.youtube.com/watch?v=CaEEevdK7GU&1=4875>
Acesso em: 04 de set de 2019.