As narrativas sobre o passado, a chamada historiografia, formam oque somos hoje. Porém, elas são contadas e reconstituídas de acordo com um ponto de vista, geralmente o ponto de vista das camadas sociais dominantes na época. Jenkins (2009) lembra que a história se constitui sobre discursos acerca do passado, sendo impossível retratar os acontecimentos tal como sucederam. Numa cultura patriarcal,
as mulheres, quando citadas, sempre foram relegadas ao papel de coadjuvante diante de grandes personalidades masculinas. E numa cultura escravocrata, a mulher negra tem a sua identidade histórica sistematicamente anulada.
Exemplo disso é Dandara dos Palmares, mulher negra que é reconhecida pelo nome de seu marido, Zumbi dos Palmares, e não pelos seus próprios feitos. Verdadeira heroína esquecida nos livros de história, Dandara foi mais que uma esposa. Escrava, mãe de três filhos, Dandara não só foi uma mulher à frente de seu tempo, mas também uma guerreira que lutou pela liberdade do seu povo e que es recusou a assumir o papel que lhe fora imposto. Ao ser presa, em 1694, preferiu o suicídio avoltar àcondição de escrava. Sua biografia, no entanto, épouco conhecida, uma vez que acultura predominante nunca aentendeu como uma heroína biografável (FEILER, 2019).
Isso significa dizer que o lugar de fala sempre foi ocupado, ou invadido, pelo homem branco heterossexual. Desse modo, é importante ressaltar que, enquanto sujeito ou nação, somos constituídos pelas diferenças que temos em relação ao Outro. Assim, a cor da pele e gênero são símbolos impossíveis de ignorar e, criando identidades e alteridades, denunciam o ponto de vista a partir do qual falamos (CHARAUDEAU, 2012; RIBEIRO, 2019).
Nesse sentido, percebe-se que a sociedade brasileira, apesar de ter em suas origens povos das mais diferentes culturas e etnias, anula a pluralidade. A objetificação dos negros, humanos que há pouco mais de um século ainda eram comercializados, segue seu curso histórico. Isso se verifica em uma série de desigualdades explicitadas em estatísticas. Conforme levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 10,4% das mulheres negras brasileiras completam o ensino superior. A taxa de analfabetismo de brancos em 2017 era de 4,2%, enquanto a de negros somava 9,9%. O desemprego é outro campo que demonstra os abismos sociais: as estatísticas mostram que pretos (13,6%) e pardos (14,5%) são a população com maior índice de desocupação, uma vez que o número de brancos sem um trabalho formal é de 9,5%. No que tange ao trabalho infantil entre crianças de cinco a sete anos de idade, percebe-se outro índice que explicita atrocidades. Em 2016, de 1.835 crianças que trabalham, 63,8 eram negras e 35,8%, brancas (ECODEBATE, 2019).
Outro exemplo que denuncia a visão da sociedade brasileira sobre as mulheres negras é a representação que se verifica em uma simples busca no Google. A ferramenta, vale ressaltar, apenas indexa as palavras-chave usadas por pessoas que inserem conteúdos nos meios online. Ao buscar no serviço Google Imagens fotos postadas com os termos “mulher bonita”, é necessário percorrer mais de 60 fotografias de caucasianas até que a busca retorne uma imagem de mulher negra. Loiras, morenas de olhos claros, jovens e com cabelos lisos predominam o mosaico que evidencia o que os usuários consideram como “mulher bonita”.
A violência de gênero também é mais pesada para as mulheres negras. Conforme levantamento do Mapa da Violência (2018), em dez anos a taxa de homicídios aumentou 15,4%, enquanto a de brancas caiu 8%. É nesse contexto que se insere a história de uma heroína contemporânea. Marielle Franco, mulher, negra, homossexual, é um caso emblemático. A vereadora, eleita sob as bandeiras que representam lutas contra preconceitos de gênero, etnia e orientação sexual, foi brutalmente assassinada em março de 2018. Mais de um ano depois, o crime, que não é apenas contra uma pessoa, e sim contra os direitos humanos, segue sem punição (OLIVEIRA, 2019).
Conforme visto nestas considerações, resultado de estudos acerca da temática da mulher negra no contexto urbano contemporâneo, as vozes das antepassadas do povo que soma a maior parte da população brasileira, foram abafadas. Sou mulher, negra, nascida nos anos 80 e, como muitas da minha geração, a relação com a minha cor de pele foi marcada por episódios doloridos de preconceito racial. Na minha época, por exemplo, não existiam bonecas negras, meus colegas de escola e depois faculdades eram em maioria brancos. São dores que acompanham, creio, todos os
negros brasileiros.
Tive a felicidade de crescer em um ambiente de muito amor, em que a diferenças unem, em vez de separar. Também tive oportunidades que muitas mulheres negras (mais do que brancas) não têm. Se, por mu lado, não ocupo o mesmo
lugar de fala das minhas irmãs de cor, por outro, também não tenho espaço no lugar de fala da sociedade branca. Ou seja, toda a minha constituição como pessoa parte de um hibridismo: negra com pai e mãe brancos e, por consequência, sem uma identificação plena com um ou outro grupo racial. Tenho completa consciência de que sou um ponto fora da curva e que precisamos criar, como sociedade, mais oportunidades iguais para todos.
Enquanto mulher negra, sinto que nossa representatividade tem aumentado. O mercado de beleza, por exemplo, já percebeu que o cabelo afro não é nicho, é uma necessidade. Gosto de lembrar que mais de 50% da população brasileira é negra. Em números, somos maioria. A questão é que essa maioria não tem ainda as mesmas proporções de espaço na sociedade. Penso que, hoje, embora seja absurdo ainda termos que discutir isso, ser mulher negra, realizada e bem sucedida, significa mostrar para as meninas das novas gerações que não precisamos aceitar o preconceito e engolir o choro (como muitas de nós já fizeram).
No que tange aos aspectos culturais (o que envolve desde religião às relações de trabalho), vejo que, ainda em 2019, os ouvidos de quem têm o poder para criar políticas públicas capazes de dar fim a um ciclo histórico de violências seguem surdos. Os lugares de fala que a mulher negra ocupa são parcos e os poucos gritos que surgem vêm de vozes sistematicamente silenciadas.
Trabalho apresentado ao Atinúké – Sobre o Pensamento de Mulheres Negras. UFRGS, setembro de 2019.
Bacharel em Jornalismo pela Unisinos, Bacharel em Turismo pela Universidade Feevale e especialista em Moda, Criatividade e Inovação pela Faculdade de Tecnologia Senac Porto Alegre.
REFERÊNCIAS
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: Modos de organização. .2 ed. São Paulo: Contexto, 2012.
JENKINS, Keith. A História repensada. .3 ed. São Paulo: Contexto, 2009. p. 23-52.
FEILER, Camila. Negros no Brasil: quem foi Dandara dos Palmares? Disponível em: <https://nossacausa.com/negros-no-brasil-quem-foi-dandara-dos-palmares/> Acesso em: 25 ago. 2019.
RIBEIRO, Djamila. Entrevista: Djamila Ribeiro quebra a internet falando sobre lugar de fala | Tema da Semana | Saia Justa. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AINEmjM4Ki4> Acesso em: 25 ago. 2019.
e d V e r e a d , e r a o d A o . Li P a s i o s i l , P a r a l e u 2 0 1 9 D i s p o n i a t a r a C a m a a r
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/13/cultura/1563024926_876079.html> Acesso em: Acesso em: 25 ago. 2019.
ECODEBATE. Somos todos iguais? IBGE mostra as cores da desigualdade. Disponível em: <https://www.ecodebate.com.br/2018/05/14/somos-todos-iguais-ibge-
mostra-as-cores-da-desigualdade/> Acesso em: 25 ago. 2019.