CADASTRE-SE

Carta às Atinúkés, Conceição Evaristo e Beatriz

Cristina Rosa

Confesso que, demorei um pouco para colocar palavras no papel e me despir pro quanto essas leituras foram e são tão tocantes no meu modo de ser e do tanto que elas refletirão nos próximos anos da minha vida. Tentando me organizar mentalmente, retomei dois dos textos que de algum jeito me conectaram com a minha mãe e meus irmãos. O primeiro foi o da Bell Hooks vivendo do amor e o segundo, o depoimento da Conceição Evaristo os quais me levaram de volta ao passado trazendo lembranças até o presente.

A verdade é que minha mãe era doutrinadora e ainda é. Percebo que ela tem sobre mim a mesma postura da mãe da menina do texto de Hooks que foi colocada de cabeça na privada e sinto que o trabalho de alguma forma a endureceu e deixou seu olhar cansado e sem brilho. Mas, ao mesmo tempo sinto ternura e um certo sentimento de culpa, todas as vezes em que se comunica comigo. “Seja forte e conte apenas com você” e isso me fez nunca pedir ajuda, nem mesmo para ela.

Sinto que quando a mãe de Conceição Evaristo desenhava o sol, a minha desenhava os pontilhados daquilo que era para ser um futuro próspero e não foi. A sobrevivência dela transformou-me responsabilidades das quais não eram minhas, como educar dois irmãos como se os tivesse parido, cozinhar, levar eles a escola e pegar seus boletins. Assim, ela trazia o pão, como se fosse seu afeto e carinho do dia. Mas não era e acho que ela sempre soube disso.

Aprendi que o amor curava quando comecei a levar o que comer para dentro de casa, transformando esse ato em aproximação a ela, através da venda dos cadernos que produzia em um curso de gráfica. Ali estabeleci a ponte à minha mãe, entendendo o peso de sustentar uma casa e o alívio trazido pelo alimento, que ainda é um momento muito importante para ela. Beatriz, como gosta de ser chamada não estava mais só, nessa jornada tão ingrata que é a vida.

A vivência nesse curso e o pensamento dessas mulheres negras me fizeram repensar como me faço presente na vida de outras mulheres pretas. Me fez entender também que não é só do pão que necessitamos, mas de afeto, abraços, beijos e muitas lágrimas que precisamos transbordar para podermos recomeçar.

Às vezes me sinto sufocada por ser a referência da minha família, por ela me buscar sempre quando precisa e que desse modo não consigo voar. Mas quando penso em bater as asas, penso também no amor que posso dar e o que posso contribuir para que os desejos de existir sejam mais do que o fato de resistir para ela.

Contudo, vejo que tenho conseguido, no momento em que Beatriz retoma os estudos e concluiu seu fundamental, dando continuidade ao término do médio e, por vir se descobrindo no teatro e no tambor, na realização coletiva da construção da casa própria e de seus novos sonhos, seja plantando ou em suas composições musicais.