‘Mulheres negras não conseguem acordar um dia e dizer: hoje vou deixar meu ativismo em casa’ – Sul 21

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A militância das populações negras contra o racismo não se dá apenas dentro dos movimentos sociais que lutam pelos direitos das populações negras, mas também em suas vidas pessoais por meio de precauções dentro dos ambientes que frequentam e ativismos cotidianos. É o que aponta a pesquisadora, historiadora, co-coordenadora do Grupo de Estudos do Pensamento de Mulheres Negras Atinuké e patrona da Feira do Livro de Pelotas de 2019, Fernanda Oliveira, que estuda temáticas que envolvem a comunidade negra no país, como identidades étnicas, pós-abolição, racismo, racialização e pensamentos de mulheres negras, por exemplo.

De acordo com Fernanda, a militância das pessoas negras tem início antes mesmo de qualquer ingresso no movimento negro organizado. Mais especificamente, inicia no momento em que essas pessoas se dão conta que, dentro de uma sociedade racista, suas identidades possuem um marcador social de raça, que normalmente é somado a outros marcadores, como de classe e gênero. Nesse contexto, a identidade de Fernanda enquanto uma pessoa negra e, consequentemente, sua militância, começou aos seis anos de idade, logo após passar pelo primeiro episódio de racismo, que aconteceu dentro da escola que estudava em Pelotas, no interior do Rio Grande do Sul. “Eu costumo dizer que até então a minha identidade era uma identidade de uma criança, no máximo de gênero, uma identidade feminina. A partir dali se agregou essa outra identidade, que é a identidade negra, que vai sempre estar cruzada com a identidade de gênero. Desde então eu já comecei a me posicionar nesse cenário de acordo com as ferramentas e possibilidades que eu tinha naquele momento”, relatou a pesquisadora em entrevista ao Sul21. Na ocasião, Fernanda falou sobre temas como a presença de mulheres negras dentro dos movimentos sociais, a importância de estudar dentro do mundo acadêmico assuntos relacionados à população negra, o trabalho desenvolvido pelo grupo de estudos Atinuké, epistemicídio e o mês da Consciência Negra, por exemplo.

Segundo Fernanda, as mulheres negras  não possuem a opção de parar de militar por seus direitos e por suas existências, uma vez que precisam resistir cotidianamente para não ter suas identidades ou seus corpos violado psicológica ou fisicamente pelo racismo. “Em geral, as mulheres negras não conseguem acordar um dia e dizer ‘hoje não vou militar, vou deixar meu ativismo em casa’, não dá, porque isso perpassa nosso corpo; nosso corpo é nosso território, que sai todo dia para a rua, assim como qualquer pessoa. Só que o nosso território é constantemente questionado, interpelado”.

A pesquisadora também pontua que a presença de mulheres dentro do movimento negro organizado sempre aconteceu, mas costuma ser apagada pela sociedade sexista, que prioriza tornar conhecidos os nomes dos homens que participam de eventos, protestos e movimentos sociais. De acordo com Fernanda, um exemplo disso é que as mulheres negras participaram do Grupo Palmares, responsável por criar a discussão sobre o 20 de novembro enquanto a data da consciência negra.

Fernanda aponta que, em função disso, o mês da Consciência Negra se torna cada vez mais fundamental ao gerar uma maior visibilidade das lutas que as mulheres negras executam ao longo dos outros meses do ano. “É o mês em que temos a visibilidade maior e, então, acho que é fundamental estar nos espaços e utilizar esses espaços de visibilidade para dialogar mais com outras pessoas. Em muitos espaços o mês da Consciência Negra é o único onde é possível trazer essas discussões. Às vezes as pessoas perguntam ‘ah, é uma comemoração?’, não, não é uma comemoração, é um momento de reflexão”, afirma a pesquisadora.

Sul21: Como a sua militância dentro do movimento negro iniciou?

Fernanda: Eu costumo dizer que a nossa militância enquanto pessoas negras começa quando a gente se dá por conta da existência. Quando eu falo se dar por conta da existência, eu quero dizer se dar por conta dos marcadores. A identidade não é uma coisa que se coloca desde sempre, a gente vai se tornando algo à medida que a sociedade vai colocando alguns condicionamentos na gente. Então, a minha identidade enquanto negra se formou aos seis anos de idade, porque foi quando enfrentei meu primeiro episódio de racismo na escola. Desde então eu já comecei a me posicionar nesse cenário de acordo com as ferramentas e possibilidades que eu tinha naquele momento.

Já a militância dentro do movimento negro organizado, dentro de uma questão institucionalizada, se colocou para mim a partir da universidade quando eu entrei na UFPEl, comecei a fazer licenciatura no curso de História, em 2004, e percebi a pouca presença de pessoas como eu. Essa percepção também foi favorecida porque no primeiro semestre tivemos um grande debate sobre cotas e a maior parte da turma era completamente contrária. Só que os argumentos eram ‘sou contrário porque é um absurdo perder minha vaga para outra pessoa’, mas naquele momento eu também não tinha argumentos mais elaborados para debater com eles. A partir dali eu entendi que era preciso buscar os argumentos, que eu precisava encontrar mais pessoas que pensassem como eu e a estratégia mais evidente para mim era encontrar pessoas negras como eu, que eram raras dentro da universidade.

Então, entre 2005 e 2006 eu comecei a buscar essas pessoas e, ao encontrá-las, construímos um grupo de estudos sobre questões étnicas e raciais. Foi um grupo com outras mulheres e homens de diferentes áreas do conhecimento, todos do mesmo campus, e a partir dele a gente começou a buscar um diálogo maior com o movimento negro de Pelotas, que já existia e era bem consolidado. Começamos também a participar de plenárias, do encontro da juventude negra gaúcha, entre outros eventos. Eu me engajei de uma forma mais evidente e isso tudo teve a ver com as discussões que aconteceram sobre cotas. O grupo deu certo e começamos a dialogar com a reitoria [da UFPEL]. O grupo começou a ser visto dentro da universidade como um espaço de diálogo que era importante chamar para conversar. Então, desde então eu dei sequência [na militância] e fui ampliando horizontes para movimentos de mulheres negras e movimento negro, por exemplo.

Sul21: De que forma você executava sua militância antes de ingressar na universidade e no movimento negro?

Fernanda: Era mais na resistência cotidiana, que é aquela que a gente vai forjando a partir do convívio familiar. Em geral, as primeiras pessoas que falam [sobre o racismo], são os pais, que abrem o jogo e dizem o que é que está acontecendo, e no meu caso foi assim. Não dá para criar a gente em uma caixinha, em uma redoma de vidro. Eu fui criada em uma família com pai, mãe e irmão, com muito carinho e com todas essas coisas, mas quando se estabeleceu esse primeiro episódio de racismo, os meus pais de pronto falaram o que havia acontecido. Eu tinha só seis anos, então não tinha muitas condições de ler esse mundo racista.

Por isso que eu falo dessa resistência que é cotidiana, porque a partir dali eu comecei a ver tudo no mundo como se estivesse relacionado com raça. Eu costumo dizer que até então a minha identidade era uma identidade de uma criança, no máximo de gênero, uma identidade feminina. A partir dali se agregou essa outra identidade, que é a identidade negra, que vai sempre estar cruzada com a identidade de gênero. A partir de então eu fui ficando mais atenta na escola, quando eu fiz magistério, que foi no curso normal, na sociedade. A minha militância foi se fortalecendo nessas resistências cotidianas, de tentar olhar para o mundo a minha volta.

Essa foi uma lição que aprendi com meus pais, que falaram ‘olha, o racismo vai se colocar, mas tu nunca pode deixar de olhar para as pessoas, tu não pode aceitar que elas digam qual é a tua história, mas tu também não pode olhar para elas dizendo que existe uma história única para elas. Tu vai ter que olhar para essas pessoas para não deixar que o racismo destrua em ti o que eles querem destruir’. Isso para mim foi fundamental. Eu nunca esqueço dessa conversa com seis anos de idade. Talvez por isso eu tenha escolhido a educação, porque ela para mim é um lugar plural, em que eu sou capaz de olhar para as pessoas; também acredito na papel da educação para a transformação, porque é onde eu consigo conversar com as pessoas e gerar empatia.

Sul21: No último dia você participou da mesa de debates sobre intelectuais negras dentro do seminário ‘Pensamento e Vivências Negras no Universo Feminino’, que aconteceu na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Como foi participar da mesa e, na sua visão, qual a importância de eventos como este acontecendo dentro do meio acadêmico?

Fernanda: É sempre um prazer voltar para a UFRGS e falar sobre essas questões e é um prazer maior ainda quando estou em uma mesa com mulheres que eu admiro. Também teve a presença de alunos e alunas do ensino básico, então estavam presentes. No final do evento teve apresentação das meninas do Candaces, que é um coletivo de meninas negras do Morro da Conceição. E são meninas que tu olha e pensa ‘nossa, estamos em ótimas mãos’, porque são meninas super conscientes de que o mundo não é fácil, de que não vai ser lindo e não vai ser simples tu soltar teu cabelo para cima, por exemplo, e achar que vai ser aceita em todos os lugares. Isso que eu acho que é fundamental, porque o racismo é muito perverso e a gente precisa preparar os nossos jovens e as crianças para eles saberem como se estabelecer, mas saber também que a despeito do racismo a gente vai continuar existindo.

Esse foi um pouco o tom do evento, e a minha fala versou muito nesse sentido da existência, de como a gente tem construído existências e resistências. Se por um lado a gente precisa resistir e o racismo exige que a gente resista, a nossa vida, o tom da nossa vida não é dado pela resistência, mas sim pela existência. A gente insiste em existir e resistir aos nossos moldes. Quando a gente afirma que a gente quer viver coletivamente, quando a gente entende que é fundamental estar em espaços negros e estar construindo espaços em uma luta anti racista efetiva.

Sul21: Você enquanto pesquisadora e acadêmica tem estudado sobre diversas questões que envolvem a comunidade negra do país. Qual a importância de existirem pessoas estudando esses temas dentro das universidades e, no caso da educação, consequentemente levando esses conteúdos para fora do mundo acadêmico?

Fernanda: Eu acho isso fundamental, mas eu sempre costumo também chamar a atenção de que não basta só trazer isso como objeto de estudo, é preciso a gente ser capaz de tirar uma lógica de pensamento que vem do colonizador. Quando eu estou falando isso, eu estou falando do combate ao epistemicídio, que é uma perspectiva que aqui no Brasil vai ser trabalhada, sobretudo, pela Sueli Carneiro, mas que não é uma coisa nova no mundo. O Boaventura de Souza Santos, por exemplo, é um dos precursores nessa perspectiva, que é a gente ser capaz de identificar as formas de morte das nossas formas de pensamento.

Então, pesquisar população negra, população indígena, mulheres, enfim, significa a gente ser capaz de entender uma outra lógica de pensamento. Não adianta eu ir pesquisar os grupos negros com uma lógica de pensamento que é do colonizador e menos ainda ainda se eu não for capaz de ouvir, de dar ouvidos. Durante muito tempo se falou em dar voz para esses sujeitos dentro dos estudos acadêmicos, mas agora a gente tem falado muito em dar ouvidos, que é entender quais são as lógicas que emergem dessas condições sociais. A Patricia Hill Collins vai gestar a ideia de que desde às margens eclodem conhecimentos que são extremamente potentes.

O epistemicídio passa pela produção de conhecimento, de episteme mesmo, que é assassinada. Quando eu tenho minha lógica impossibilitada de acontecer na academia, eu tenho também meu corpo impossibilitado de acontecer, porque é uma parte de mim que é negada. Essa parte minha pode se espalhar para todo o resto do meu corpo, e a Sueli bate muito nessa tecla, de que o epistemicídio não trata única e exclusivamente da episteme, mas de um ser completo que pode ser também deixado de existir. Nesse sentido para mim é fundamental trabalhar com esse estudos dentro da academia, evidentemente, mas é preciso que sejamos capazes de entender qual é a lógica do sujeito e fazer essa imersão mais profunda de entender que esses sujeitos estão gestando formas de pensamento que precisam ser trazidas para dentro da academia.

A proposta da universidade é ser um universo de saberes, é isso que significa o sentido mais profundo de universidade: universo de saberes. O grande problema é que a gente não faz da universidade um universo de saberes, ela tende a ser mais um espaço em que determinados saberes são valorizados em detrimento de outro. Então, quando a gente faz esse exercício de trazer outras lógicas para dentro da universidade, na verdade estamos cobrando esse lugar democrático que a universidade sempre deveria ter tido e que ela ainda resiste em alguma medida, embora a gente tenha algumas existências dentro dos espaços acadêmicos que permitem que essas possibilidades venham a tona e comecem inclusive se estabelecer.

A gente tem hoje uma série de professores e professoras negras comprometidos a fazer circular esse conhecimento que vem desses outros povos. Então, não significa em nenhuma medida dizer que esses conhecimentos que sempre estiveram lá [na academia] não são válidos, mas dizer que só eles não dão conta de mostrar esse universo que a universidade tem que ser capaz de fazer. Nesse sentido, para mim é fundamental aliar essas duas perspectivas: o combate ao epistemicídio e a permanência dos objetos de estudo, como a gente ainda coloca, relacionada a essas posições outras dentro da sociedade.

Sul21: Você foi uma das idealizadoras do Atinuké. O que motivou a criação de um grupo voltado para estudos sobre o pensamento de mulheres negras?

Fernanda: O que motivou foi uma série de fatores. O primeiro deles foi a perda de uma amiga, que foi a Tatiana Renata Machado, que recebeu esse nome Atinuké quando ela fez a iniciação dela no batuque. Ela era uma mulher extremamente ativa no movimento de mulheres e tinha pouco mais de 30 anos quando faleceu, em 2014. Nesse período eu já tinha feito alguns cursos de formação, em 2014 eu tinha ido para o Latinidades, que é um encontro que acontece em Brasília para marcar 25 de julho, que é o dia da mulher negra, latino americana e caribenha, e é um evento bem grande que reúne mulheres negras da diáspora. Naquela edição estava Angela Davis, Patricia Hill Collins e outra série de mulheres negras da diáspora. Eu fui sozinha e compartilhei muito com a Tati. Então, eu falava com ela, trocava mensagens com ela contando o que estava acontecendo. Em 2015 eu fiz outro curso, no Rio de Janeiro, que foi o Curso de Atualização e Estudos da Diáspora Africana, promovido pela universidade do Texas em parceria com a ONG Criola, que é uma ONG de mulheres negras do Rio de Janeiro e a Universidade Federal Fluminense. Eu voltei muito impactada e conversei muito com outras amigas negras e ficamos refletindo o que era preciso fazer para esse conhecimento circular e ficamos amadurecendo a ideia de como poderíamos fazer isso.

Infelizmente, a Tati veio a falecer e, nesse mesmo momento, uma amiga, a Giane Vargas Escobar, que é uma das idealizadoras do curso, me procurou para nós criarmos um curso de feminismo negro dentro da UFRGS. A gente ponderou algumas questões, como o fato de que só o feminismo não daria conta de pensar a potência desse pensamento de mulheres negras, que extrapolam o feminismo negro, e também que dentro da UFRGS seria difícil fazer um curso exclusivo para pessoas negras.

Acabamos resolvendo conversar com a Nina Flora, que era na época era coordenadora do espaço Escola Áfricanamente, um espaço autônomo aqui em Porto Alegre, e que era madrinha de santo da Tatiana. A Nina de pronto acolheu a ideia e disse para fazermos na escola. Desde então mantemos o curso, que não deixa de ter seu germe naquele primeiro curso de estudos que participei da criação, mas que agora tem essa configuração mais relacionada à perspectiva de compartilhar esses conhecimentos produzidos por mulheres negras. A gente percebia que tinha uma procura muito grande. Eu lembro que quando eu voltei [dos cursos de formação] as pessoas queriam saber ‘tá, mas o que [as autoras] estão produzindo?’. Aí a gente começa ler e as pessoas ficam encantadas porque se veem na produção epistêmica, veem ali uma epistemologia capaz de representar suas experiências, veem que é possível produzir conhecimento desde um outro ponto de vista.

Também tem o fato de que o curso não é voltado somente para mulheres acadêmicas. Recebemos mulheres que, por exemplo, não são versadas na questão de ler dez páginas de uma vez, o que para quem está dentro da academia é algo tranquilo. Temos também um espaço que aceita crianças, porque como é sábado sabemos que tem mulheres que deixam de fazer um curso porque não tem com quem deixar os filhos.

Sul21: Você mencionou que o curso não é voltado apenas para a mulheres acadêmicas. A partir disso, qual a importância de possibilitar que mulheres negras de diversas classes sociais estudem os pensamentos das autoras e pensadoras negras?

Fernanda: A importância é, sobretudo, virar o espelho; fazer elas mesmas perceberem e compartilharem as suas potências. O mais bacana do curso não está no texto, o texto é praticamente um disparador do assunto do dia, só que os assuntos não vem recortados. Por exemplo, quando a gente discute a afetividade, tem os textos que usamos, mas as histórias que aparecem ali no curso são fantásticas. O curso se configura como um espaço seguro, é um espaço onde as coisas que são ditas ali, tendem a permanecer ali. A medida que as mulheres vão se conhecendo, elas realmente entendem que estão convivendo com irmãs ali, que não são iguais, que não fazem as mesmas coisas que elas, que talvez se elas encontrassem na rua não teriam nunca essa conversa, mas ali dentro elas conversam. Ali dentro elas percebem a potência das suas próprias experiências de vida. É um espaço também que é de cura, porque frequentemente saem histórias de muita dor ali, que o texto só puxou, ele não está falando sobre isso, mas puxou essa história.

O principal para mim de ler mulheres negras é fazer o que elas dizem. O que eu tenho chamado de epistemologia de mulheres negras, de mulheres que vem do feminismo, de mulheres que vem do mulherismo africano, de mulheres que vem de pensamento de mulheres negras, que não se colocam em uma ou outra matriz de pensamento, é que nós somos potentes. O racismo, o sexismo, uma série de questões relacionadas à sexualidade, tendem a podar nossas potências. Então, o mais interessante do curso é justamente fazer com que essas potências eclodam.

Por isso, eu digo que é virar o espelho. Não é nem tu te ver na tua irmã e dizer ‘nossa, como somos bacanas, lindas e podemos dominar o mundo’, não, até porque o mundo é perverso, mas é tu virar o espelho para ti mesmo e ver como tu é potente, que tudo que tu viveu na tua vida constrói o que tu chegou até aqui e isso te ajuda a seguir; tu é forte por isso e a culpa não é tua pelas coisas que acontecerem – e se por ventura foi culpa, está no passado, já passou, e tu pode fazer as pazes com teu passado para seguir daqui para a frente.

Sul21: Vemos cada vez mais muitas mulheres militantes da causa negra no país, tanto no movimento negro quanto no feminismo negro. Está realmente aumentando o número de mulheres dentro desses movimentos ou questões como a internet e as redes sociais, por exemplo, fazem com que o que esteja aumentando seja, na verdade, a visibilidade dessas mulheres?

Fernanda: Eu acredito que as duas coisas, mas eu diria que a mais importante delas é a internet, porque as mulheres sempre estiveram nos movimentos organizados e, inclusive, na criação dos principais movimentos organizados. Trazendo para Porto Alegre, as mulheres estavam dentro do Grupo Palmares, que é o responsável por criar essa discussão em torno da pertinência do 20 de novembro como a data da consciência negra. Mas como a gente vive em uma sociedade que é pautada e marcada pela exclusão das mulheres dos espaços de poder, sempre tivemos nomes de lideranças masculinas aparecendo à frente dos movimentos, no entanto, as mulheres sempre estiveram lá. O que a internet faz é horizontalizar, é possibilitar que tu utilize aquela plataforma para divulgar o que tu está fazendo.

Porém, é inegável que nos últimos 15 anos a gente viu no Brasil um boom de mulheres negras acessando, sobretudo, os espaços acadêmicos. E é também desde os espaços acadêmicos que a gente vem acessando essas outras ferramentas. Existe um empoderamento sim que vai confluindo de uma forma mais coletiva, digamos assim, e aí as mulheres vão para dentro da internet produzindo conteúdo. Não é mais uma fala única e exclusivamente e experiência, são mulheres que também estão produzindo conhecimento, que estão na ponta da universidade, graduandas, graduadas, mestrandas, mestres, doutorandas, etc. Essas medidas políticas que tivemos ao longo dos anos são inegáveis e proporcionaram que as mulheres adentrassem em maior número dentro desses espaços de poder e, consequentemente, levassem essas experiências de dentro do movimento negro para dentro das universidades. Eu costumo marcar muito que há aí uma questão simultânea: leva o conhecimento do movimento para dentro da universidade e leva a universidade para dentro do movimento.

A internet acaba sendo também essa grande plataforma, sobretudo, com as redes sociais, que possibilita que gente tenha conhecimento a isso. Eu lembro na primeira vez que eu ouvi falar sobre feminismo negro. Eu militei uma vida inteira e eu fui ouvir falar sobre feminismo negro por volta de 2012, porque nunca tinha ouvido falar antes. Comecei a ler e buscar e ver que existiam mulheres negras aqui do Brasil produzindo sobre, mas eu nunca tinha escutado, nem mesmo dentro do movimento social em que eu dialogava com várias mulheres, só que elas também nunca tinham escutado. Ainda parava no movimento social uma ideia de um feminismo hegemônico. Então, eu acredito que essas duas questões confluíram: a maior presença de mulheres dentro da academia, mas também o surgimento das redes sociais e a horizontalidade que há nelas.

Sul21: As políticas que você mencionou que influenciaram o ingresso das mulheres na academia seriam as políticas de cotas?

Fernanda: Não só as políticas de cotas, mas políticas de redistribuição de renda. A política de cotas começa a ser implementada a partir, sobretudo, de 2008, mas antes disso, e eu sou fruto desse fato, é que temos desde o início de 2002 uma política de redistribuição de renda e isso vai ser fundamental para que as pessoas possam permanecer nos estudos. As mulheres negras sempre estudaram, mas se a gente for olhar, por exemplo, a partir da década de 1940 começa a surgir um boom de mulheres negras professoras, com formação no curso técnico normal. Então, eram muitas mulheres dentro desse espaço da educação básica. Durante todo esse período também tivemos mulheres que conseguiram ingressar nas universidades, conseguiram estudar, se formaram nas mais diferentes áreas, mas ainda eram exemplos pontuais.

A partir dos anos 2000, é com essa redistribuição de renda que muitas mulheres conseguem sair do ensino médio e já dar entrada direto no ensino superior. No ensino superior a redistribuição de renda também é fundamental, porque é aí que temos as políticas de manutenção dos alunos, como bolsas administrativas das universidades, auxílios financeiros, investimentos em passagens escolares, toda uma estrutura que vai ser proporcionada pelo governo Federal, que vai possibilitar que os alunos e as alunas entrem e permaneçam nas universidades.

Sul21: Você mencionou as mulheres enquanto precursoras do 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra e estamos justamente no mês da Consciência Negra. Na sua visão, qual a importância do mês da Consciência Negra e qual o papel das mulheres negras hoje nesse mês?

Fernanda: Ele é um mês fundamental para trazer uma visibilidade maior daquilo que a gente vem fazendo o ano inteiro. Em geral, as mulheres negras não conseguem acordar um dia e dizer ‘hoje não vou militar, vou deixar meu ativismo em casa’, não dá, porque isso perpassa nosso corpo; nosso corpo é nosso território, que sai todo dia para a rua, assim como qualquer pessoa. Só que o nosso território é constantemente questionado, interpelado. Então, é impossível não fazer isso cotidianamente. O mês da Consciência Negra é o mês em que temos a visibilidade maior e, então, acho que é fundamental estar nos espaços e utilizar esses espaços de visibilidade para dialogar mais com outras pessoas. Em muitos espaços o mês da Consciência Negra é o único onde é possível trazer essas discussões. Então, é fundamental utilizar esses espaços para fazer isso, assim como é fundamental utilizar outros espaços, principalmente os que não são de fácil acesso para nós.

Recentemente, eu enquanto patrona da Feira [do Livro de Pelotas] entendi que era um espaço também de disseminar esses conhecimentos que eu acredito e que eu venho produzindo e fazer de uma outra forma. Quando eu me propus enquanto patrona fazer algo que não necessariamente um patrono ou uma patrona de uma Feira do Livro faz, como oficina com alunos, por exemplo, tem a ver com também entender que é uma responsabilidade política fazer esse tipo de coisa. Então, o mês da Consciência Negra ele é a grande cereja do bolo para nós. É o momento que a gente acessa outros espaços que, às vezes, não foram acessados, aproveita para fazer esses diálogos e aproveita também para procurar refletir.

Às vezes as pessoas perguntam ‘ah, é uma comemoração?’, não, não é uma comemoração, é um momento de reflexão; um momento em que a gente pode sentar com as pessoas minimamente amparadas por leis que permitem que a gente fala isso, inclusive nos espaços escolares, e isso é fundamental dentro do mês da Consciência Negra.

Publicação original: https://sul21.com.br/noticias/entrevistas/2019/11/mulheres-negras-nao-conseguem-acordar-um-dia-e-dizer-hoje-vou-deixar-meu-ativismo-em-casa/